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Ramones Disfarçado

fabio mozine capa - arquivo pessoal

Fábio Mozine, o poderoso chefão do hardcore nacional, revela sem pudores o seu amor pela música brega

Leonardo Fernandes

Fábio Mozine chorou. Difícil imaginar o integrante de grupos de hardcore como Mukeka di Rato, Os Pedrero e Merda verter uma lágrima, mas ele conta que não se conteve ao conhecer um de seus maiores ídolos: Adelino Nascimento. A conversa por telefone ocorrida em 2008 foi curta, mas cheia de significado. O bregueiro piauiense morreu poucos meses depois.

“Eu me emocionei, caí no berreiro, não conseguia me controlar. Ele ficou até preocupado, ficava repetindo que eu tivesse calma. Eu queria fazer uma festa com ele como atração principal. Foi logo se empolgando: ‘Eu posso ir no meu automóvel agora’. O cara tava em algum interior do Nordeste querendo pegar a estrada pra me encontrar em Vila Velha [ES]! Dava pra sentir na voz que ele tava ‘bebaço’. Levava uma vida bem punk”, afirma o músico capixaba de 37 anos.

Adelino, que se a autointitulava o “cantor apaixonado do povão”, não resistiu às complicações pulmonares decorrentes de uma asma crônica. Boêmio, era conhecido pelas bebedeiras e o vício em cocaína.

No ano seguinte, Mozine prestava sua homenagem com a cover “Adelino Nascimento”, como foi rebatizada “Meus Olhos Estão Chorando”. Parte do quinto disco d’Os Pedrero, “Sou Feio Mas Tenho Banda!”, a música originalmente composta como um pedido de desculpa por um pé na bunda se transforma aqui em um lamento de morte. “Vim pra dizer que ainda te amo/ Só que eu não posso te fazer feliz/ Os meus olhos altas horas estão chorando/ Te dar adeus é coisa que eu nunca quis”, diz o refrão.

Se o bigodinho não era o suficiente para deduzir, saiba que no peito tatuado de Fábio Mozine bate o coração de um cafona. Ano passado, essa faceta do músico ficou ainda mais evidente com o lançamento do último álbum do Merda, “Índio Cocalero”, com versões hardcore de Frankito Lopes e Alípio Martins. Já em “Känela Verdë Jäpanese”, documentário de Juliano Enrico sobre a turnê do Mukeka di Rato no Japão, que saiu no mesmo ano, a trilha é recheada de originais de Adelino.

Agora, como um cara que dedicou a vida ao punk, sendo inclusive o dono de um dos selos mais prolíficos do estilo, a Läjä Records – criada há 15 anos e com 130 discos, CDs, DVDs e K7s no catálogo  – , vem se interessando cada vez mais por baladas românticas e canções de dor de cotovelo?

“Meu gosto musical vem se resumindo a duas coisas: cachaça e chifre”, define em entrevista por telefone de Vila Velha. Na conversa que segue, ele fala como o brega se tornou uma obsessão na sua vida – da discoteca ao palco.

Dumont Kamikaze – O que chegou primeiro na sua vida, o brega ou o rock?

Fábio Mozine– O brega chegou primeiro na minha formação musical, pode ter certeza. Minha mãe é a culpada. Quando eu era moleque, meu pai era o mais cabeça da família, escutava Geraldo Vandré, Chico Buarque… Já a minha velha ouvia rádio AM. Então fazia o dever de casa ao som de Roberto Carlos, todo aquele pessoal da Jovem Guarda, Amado Batista. Foi aí que descobri o meu lado cafona: na cozinha de casa. Até hoje eu não sei como não tô cantando baladas românticas em um puteiro qualquer…

DK – E por que isso não aconteceu, pelo amor de Deus?

FM – [Em meio a risos] Bicho, veio adolescência, eu virei ‘benguer’. Passou mais uns anos, conheci o hardcore. Mas nunca vi ninguém mais foda que esses caras do brega. Muito mais firmeza que muito cara de moicano. Eu digo isso sem vergonha, já que nunca rejeitei nenhuma fase minha: se neguinho vier argumentar comigo, eu provo que o brega é a mesma estrutura do Ramones. Os mesmos três acordes, na mesma sequência.

DK – Mas e aí? Como o brega ressurgiu nessa história?

FM – O momento de redescoberta do brega, de eu pirar nas letras de verdade, já foi bem depois. Quando comecei a trabalhar com música, colecionar disco. Foi o Adelino Nascimento que me fez gostar de brega de novo. Foi aí que eu descobri meu lado cafona.

"O Adelino foi meu primeiro amor. Foi com ele que eu descobri meu lado cafona"

“O Adelino foi meu primeiro amor. Foi com ele que eu descobri meu lado cafona”

DK – Adelino o parece ser mesmo o seu grande “muso”. Ele é o seu cantor favorito?

FM – Com certeza é o cara de que eu mais gosto. A música dele é um negócio popular de verdade. Faz pouco tempo, consegui botar as mãos no seu primeiro disco. Por mais que seja um disco antigo, tosco, é um trabalho impecável. Foi o Aldo Sena que produziu, tipo o ‘dream team’ do brega paraense. Frankito Lopes é muito engraçado, Osvaldo Bezerra é outro que gosto muito. Mas o Adelino foi meu primeiro amor.

DK – Tanto que você gravou uma cover dele com Os Pedrero. De onde surgiu a ideia?

FM – Gravamos ‘Adelino Nascimento’ como uma forma de divulgação do cara. Às vezes me sinto como se tivesse uma missão. Quero espalhar para as novas gerações as maravilhas desse gênio. Essa juventude está perdida, sabe?

DK – O Jimmy London (Matanza) divide os vocais na música. Como surgiu a parceria? Ele também é fã do Adelino?

FM – Na verdade foi ideia do produtor do álbum, o Rafael Ramos. Como Jimmy faz parte do casting da gravadora dele, a Deckdiscs, sugeriu a parceria. Não sei te dizer até que ponto ele gostou ou não da música original. Mas foi de boa, participou mesmo da gravação, deu palpite.

DK – As releituras de brega para o hardcore se repetiram no disco do Merda, “Índio Cocalero” (2012), com “Frankitão [“Quero dormir em teus braços”, outra música rebatizada], do Frankito Lopes, e “Piranha”, de Alípio Martins. Isso está se tornando um tema no seu trabalho?

FM – Eu não planejo nada pra nenhuma das minhas bandas. Às vezes a gente tá bebendo e vem: ‘Bicho! É essa a música e tem que ser gravada por tal banda’. As coisas surgem muito em boteco, de cachaça ‘mermo’.  O Merda tem umas músicas de duplo sentido, não quer dizer que são engraçadinhas, mas umas coisas mais metafóricas. Como o “Índio Cocalero” fala muito de selva, Amazônia, umas gangues inventadas da região Norte. Então, veio na hora o Frankito Lopes, que era ‘O Índio Apaixonado’. Inclusive, eu também cheguei a ligar pro Frankito.  De novo queria que fizesse um show pra mim e uns amigos. Na época estava viciado em um DVD que ele tinha gravado na Bahia. O cara também estava muito bêbado ao telefone. Eu falava que amava ele, que ele era muito foda… Essas merdas, sabe? Logo depois desse papo, adivinha só? Ele morreu. Por isso tô proibido de falar com qualquer cantor de brega.

DK – Você tem autorização pra tocar essas músicas?

FM – No caso do DVD do Mukeka di Rato no Japão, pedimos autorização da Unacam, a editora que detém os direitos do espólio do Adelino Nascimento. Eu não registro as músicas como minhas, dou o crédito direitinho. A maior dificuldade é achar o detentor dos direitos. Estou há um tempão louco pra gravar uma música do Carlos Santos, mas não sei com quem negocio. Alias, se puder me ajudar a entrar em contato com o cara, agradeço [risos]. Eu só quero divulgar, só quero que os outros conheçam. Como aconteceu comigo um dia.

Tesouros de Mozine: "[O brega] é outra visão de mundo: outras palavras, outros sotaques. O nome d’Os Pedrero tem tudo a ver com esse universo. É essa coisa do povão, do simples, do cara que não tá nem ai."

Tesouros de Mozine: pequena mostra dos cerca de mil discos do músico. “[O brega] é outra visão de mundo: outras palavras, outros sotaques. O nome d’Os Pedrero tem tudo a ver com esse universo. É essa coisa do povão, do simples, do cara que não tá nem ai.”

DK – Mas afinal o que te chama atenção nesse tipo de música?

FM – É outra visão de mundo: outras palavras, outros sotaques. Música falando do Remo, do Paysandu [times de futebol paraense]. É uma realidade tão distante, que às vezes eu me sinto parte dela graças à música. Sem contar esse ar de cafajeste. Como o Raimundo Soldado cantando que as mulheres querem agarrá-lo. Inclusive, o nome d’Os Pedrero tem tudo a ver com esse universo. É essa coisa do povão, do simples, do cara que não tá nem ai.

DK- O pessoal que toca contigo teve que ser ‘convertido’ ao estilo?

FM – De certa maneira, sim. Mas naturalmente. Sem forçar a barra, sacou? Eles não são tão fãs quanto eu, mas sempre compram a ideia na hora. Não é muito diferente do que a gente toca. É aquele negócio que te falei do Ramones disfarçado.

DK – E nunca rolou dos fãs torcerem o nariz?

FM – Nunca rolou nada disso não. Estou nessa porque gosto, não é só pra fazer média. Mesmo tocando um som pesado, não há como mudar o seguinte: passei minha infância ao lado de um bando de tio bêbado escutando essas merdas no rádio. Não há Discharge que vá mudar essa parada.

DK – Como você conhece esse material? Vem tudo pela internet?

FM – Tem uma confusão muito grande entre brega e vídeo engraçadinho de internet. Mandam muito link dizendo que é uma coisa e não passa de um zé mané metido a comediante. Eu sou um comprador compulsivo de vinil. Toda hora estou caçando coisa nova. Quando fui no Japão descolei umas coisas bem cafonas. Na Argentina arranjei um monte de coisa da Jovem Guarda em castelhano. Brega é meio que uma linguagem universal.  Mas só foi quando visitei Belém (PA) pela primeira vez com o Mukeka di Rato, em 2009, é que dei um upgrade bacana na coleção. Dos mil discos que eu tenho, devo ter entre 100 e 150 só de brega.

DK – Se você veio no Pará deve ter pelo menos ouvido falar do tecnobrega…

FM – Eu já conhecia o tecnobrega. Quiseram me levar em uma aparelhagem, mas não rolou. Conheci o Calhambeque da Saudade [festa dedicada a música romântica dos anos 1980. Leva esse nome porque a cabine do DJ é montada dentro de um carro]. O cara me ganhou na coleção de vinis. Agora tem algumas coisas que não descem, como a Gaby Amarantos. Tinha todos os elementos pra eu gostar da música dela. Dá pra ver que ela é gente boa, que veio do underground. Não pegaram uma alemã pra cantar o bagulho da periferia. Mas o jeito que vendem a imagem dela criou uma barreira comigo.

DK – Mesmo correndo o risco de matar mais um bregueiro, tem alguém dessa galera que você queira conhecer? Quem sabe até fazer um dueto?

FM – Eu gostaria muito de conhecer o Oswaldo Bezerra. Morro de vontade de ir no show desse cara. Tem muita gente que eu gostaria de conhecer na verdade, mas de bate-pronto seria o Oswaldo. Quando eu me aventurei a falar com o Adelino, eu tinha ideia de fazer uma banda com ele tocando versões um pouquinho mais rock and roll do seu repertório. Depois da sua morte, pensei em fazer um disco-tributo só com bandas de hardcore e punk. Ainda planejo algo nessa linha, mas falta tempo. Seriam bandas tipo Mukeka di Rato, Matanza… Esse projeto de banda cover do Adelino já vem de longe, inspirado em outra velha ideia que ainda não foi pra frente, o Tenébrio Peixoto…

DK – E quem seria o Tenébrio Peixoto?

FM – Com o passar do tempo comecei a compor alguns bregas. Ai criei um alter ego pra quando assumir minha carreira de croonerde corno, que é o Tenébrio Peixoto. O nome eu peguei emprestado de uma conversa que tive com um amigo que fala meio errado. Um dia foi falar que a coisa era tenebrosa, acabou saindo ‘tenébrio’. Falei pro Rafael Ramos que ia formar um projeto chamado Tenébiro Carlos, em homenagem ao rei. Ele respondeu: “Tenébrio Carlos o caralho. Põe o nome de Tenébrio Peixoto”. Uma vez até arrisquei a ensaiar, separar repertório. Mas não gostei muito do resultado, da minha voz. Então tem que amadurecer um pouco mais. Mas já está tudo mais ou menos formatado.

"Rapaz, eu considero o Roberto Carlos um cara brega pra caralho. Um roceiro que se acha o tal"

“Rapaz, eu considero o Roberto Carlos um cara brega pra caralho. Um roceiro que se acha o tal”

DK – Por falar em Roberto Carlos, considera ele um cara brega?

FM – Rapaz, eu considero o Roberto Carlos um cara brega pra caralho. O que faz o cara tão brega é o fato dele não se achar brega, entende? Porra, um capixaba fuleiro com aquele cabelinho de cuia e uma perna faltando. Um roceiro que se acha o tal. Veja bem, apesar de tudo, acho ele um músico foda. Eu cheguei a tocar numa banda cover do Roberto Carlos, na Amigos do Rei, em 2008. Eram só os clássicos dos anos 60, nas versões originais. Sem distorção, tudo certinho, bem careta. Adorava aquilo. Só que ele seria mais foda se assumisse seu lado brega.

DK – Acha que o brega é a alma do Brasil? A gente é cafona por natureza?

FM – Acho que o ser humano é ridículo, bicho. Independente se é brasileiro ou não. Nos outros países deve ter o brega deles.  Na Polônia deve ter algum lenhador que escuta um conjunto de cornetas pra embalar algum pé na bunda e morrer de dor de cotovelo por isso. E a galera mais jovem dá risada e faz pouco. Na verdade, pra mim não tem essa coisa de brega, erudita ou popular. Todo tipo de música é brasileira. Hardcore é música folclórica pros meus ouvidos. [DK]

Do mosh pit ao Cabaré

Para você que está com preguiça de procurar na Wikipedia, segue um resumo das biografias dos bregueiros homenageados por Fábio Mozine.

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Adelino Nascimento (1956-2008) – O cantor apaixonado do povão teve uma carreira prolífica, lançando mais de 30 discos entre os anos 1980 e o começo dos 2000. Sua música retrata o universo esfumaçado dos cabarés em que costumava se apresentar, como a ode que fez a uma prostituta em “Secretária da Beira do Cais”. Durante um show em Sergipe, passou mal e foi internado as pressas. Morreu no dia seguinte, aos 52 anos.

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Frankito Lopes (1938 – 2008) – Frankito Lopes levou até as ultimas consequências a personagem d’O Índio Apaixonado. Além do cocar de penas coloridas, sua marca registrada era a pintura de guerra tatuada no rosto. Ganhou a alcunha por se dizer descendente de indígenas da Ilha do Bananal, município do estado do Mato Grosso. Acabou dando origem a uma tribo de mulheres e filhos, com inúmeros casos extra conjugais. Morreu de cirrose aos 70 anos.

Alípio Martins - reproducao internet

Alípio Martins (1944-1997) – Comparado com o resto da lista, Alípio era um carola. Não bebia e nem fumava, mas gostava de fazer gênero posando com um cachimbo, hábito que copiou do ídolo Roberto Carlos. Um dos percussores da lambada na década de 1980, tinha um senso de humor que se destacava em meio ao mar de baladas românticas do brega, com composições como “Festa dos Cornos”, “Tira a Calcinha” e “Eu Quero Gozar (A Vida Com Você)”. Tanto que chegou a apresentar seu maior clássico, “Piranha”, em esquete no programa “Os Trapalhões”, em 1977. Cacildis!

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